Cuidados finais

quinta-feira, 1 de setembro de 2011 0 comentários

Meu primeiro trabalho como enfermeira recém formada foi no Hospital Geral da minha cidade, que ia desde a maternidade à geriatria, passando pela emergência e pela área de recuperação para pacientes com queimaduras de alto grau.

Normalmente eles designavam as enfermeiras novatas para os casos terminais ou "iniciais": cujos cuidados não vão além de banho/comida, tanto para aqueles que estavam indo, como para aqueles que estavam chegando.

Minha primeira paciente foi a Dona Cândida. Senhorinha encantadora, dos olhos escuros e cabeça branquinha. Era fácil de notar que foi uma mulher muito bonita. O rosto, hoje muito enrugado pela ação do tempo, era harmonioso e delicado. Estava ali porque seu Alzheimer chegou a um nível que impossibilitou sua família de tomar conta dela sozinha. Afinal, eles também têm vida e já não sabiam mais o que fazer. Mas a visitavam constantemente. Era a idosa com mais visitas por mês.
Sua família era grande, ela tinha umas quatro filhas e cinco filhos. E eles vinham em dias separados, traziam as esposas. Um dia uma moça repreendeu o irmão por trazer a filha caçula, já que Dona Cândida não se lembrava de ninguém, não seria conveniente expor as crianças a essa situação. De certo modo isso foi se agravando. A doença foi tomando conta dela e ela já não se lembrava do nome das coisas, já não entendia o que estava fazendo, já não se lembrava dos filhos, das historias, da vida que teve fora deste hospital. Minha supervisão foi se tornando diária, até que eu não saia mais de seu quarto. Estava ali quando acordava, quando ia dormir. Não se lembrava do meu nome, mas sabia quem eu era. Acabamos por nos tornar amigas. Ela me contava histórias que muitas vezes os filhos vinham dizer que era ‘invenção de velha doida.’

Com o passar dos meses, conforme a doença ia se agravando, a presença dos filhos foi deixando de existir. Primeiro foi a mulher mais velha, dizendo que se ela deixasse de ir visitar um dia ou outro, ela nem ia notar. Acabou por não aparecer mais. Depois a caçula, dizendo que já não podia mais aguentar ver a mãe daquela maneira, que isso a estava desgastando. E, um a um, foram arrumando desculpas. Era a criação dos filhos, era o trabalho, o casamento, qualquer motivo que fosse. Aos poucos, Dona Cândida foi ficando só. Até que chegou a um ponto em que eu era tudo o que ela tinha.

Aquilo me partia o coração, decidi que não abandonaria aquela mulher em seus ultimos dias, mesmo que ela não lembrasse de mim. E foi aí que eu comecei a fazer exatamente o que em toda a faculdade me ensinaram a não fazer: me envolver.

Todos os dias durante o café da manhã eu lia para ela uma parte de seu livro favorito e todos os dias ela pedia para que eu pegasse do começo. Depois do almoço e do banho, ela gostava de ver desenhos animados, então a televisão não era desligada até que ela pegasse no sono. Fiz de tudo por aquela senhora e isso me fazia muito bem. Não que eu quisesse tomar o lugar dos filhos, mas me partia o coração a idéia de alguém passar o resto da sua vida sozinha.

As outras enfermeiras me repreendiam calorosamente. Diziam que eu era uma novata estúpida, que aquela velha não ia durar tanto e eu ia sentir muito. Não ligava.
E lá estava eu no quarto de Dona Cândida, todos os dias. Depois da janta, eu dormia no sofá do quarto, caso ela precisasse de mim durante a noite. E normalmente, precisava.

Sempre acordava por volta das 2 horas da manhã, achando que estava atrasada para algum compromisso importantíssimo, do qual não se lembrava. Chorava desesperadamente, pois seu marido odiava que ela se atrasasse. E era eu quem estava ali, lhe acalmava e fazia voltar a dormir. Certa noite estava de pé olhando para a janela, ia tentar abri-la. A sorte é que o sofá ficava de baixo da janela, não tinha como eu não acordar.

Ela estava em um estagio que não era possível que ficasse sozinha, poderia se machucar. Esses surtos começaram a ficar recorrentes pela manhã também. Recusava-se a comer, dizia que só poderia comer quando a filha chegasse, combinaram de almoçar juntas e achava terrivelmente mal educado começar antes da visita uma refeição.

Outro dia reclamou que não se lembrava onde tinha posto os óculos. Apesar da idade, a visão de Dona Cândida era perfeita, nunca precisou de óculos. Certa vez lhe perguntei de que óculos estaria falando, me disse que, depois que o marido faleceu, passou a usar seus óculos para economizar no oculista. Quando a mais velha veio para cuidar das despesas do hospital, lhe contei sobre os óculos e ela chorou, disse que o marido não estava morto, eles haviam se divorciado a anos. Era a doença de novo.

Os filhos ligavam periodicamente para perguntar como ela estava. O marido em questão nunca telefonou ou apareceu. A caçula falou que o pai não dava as caras a mais de vinte anos, desde que se divorciaram. E que o principal motivo do divórcio foi o princípio da doença. Voltei para o quarto com o coração na mão. Pobre Dona Cândida.

- O que você tem, minha filha? – Dona Cândida me perguntou, com sua voz arrastada, com um esforço sobrenatural para encontrar as palavras.

- Não é nada, senhora. – Respondi.

- Fique bem, minha querida. - Cheguei perto de sua cama e a olhei com ternura.

- A senhora também. - Ela passou a mão em meu rosto, abriu um sorriso e deitou a cabeça.

- Abra um sorriso porque estou esperando uma encomenda. Pedi para que meu marido me trouxesse um pote do chocolate preferido de Maria, ele deve chegar a qualquer momento. Se você for educada com ele, posso lhe dar algum. - Respirei fundo e a ajudei a deitar.

- Olha, ele acabou de ligar, disse que vai se atrasar, só deve vir pela manhã. - Ela bufou.

- Típico. Ele sempre faz isso. - Rolou os olhos e fitou a porta.

- Porque a senhora não deita um pouco para descançar? - Me olhou com os olhos compridos.

- Sim sim, está certa. O museu de hoje me deixou cansada. - Encostou a cabeça e eu ajeitei seu travesseiro. Dormiu feito um anjo.

Na manhã seguinte, quando voltei da cozinha com o nosso café, Dona Cândida ainda dormia. Ultimamente estava dormindo mais do que estava acostumada. Chamei por ela, ela não respondeu. Chequei sua pressão.

Chamei a enfermeira chefe, como nos foi ensinado na faculdade, e elas fizeram os procedimentos padrão. Meu coração estava quase parando também, minha garganta estava amarrada com o choro que queria sair.
Pobre Dona Cândida. Morreu sem os filhos, sem o marido. Tudo o que ela tinha era uma televisão de 15 polegadas e uma enfermeira.

Algumas horas depois, os filhos vieram fazer o reconhecimento de corpo e Dona Cândida foi levada à autópsia. A mais velha estava desolada. Chorava, esbravejava, falou da mãe, do quanto se arrependia, do quanto isso não poderia acontecer com ela agora. Os outros filhos, chorosos, assistiam àquilo sem coragem de pará-la.

Saí do quarto pela primeira vez naquele dia. Finalmente chorei, não podia chorar na frente das outras enfermeiras, ouviria muitos ‘eu avisei’. Não estava com cabeça para isso.

Pensei na vida, de como era injusto uma senhorinha tão encantadora ser levada desse jeito. Entrei por um corredor colorido e, outra novata passou ao meu lado, uma amiga minha. Fizemos faculdade juntas, mas fomos designadas para áreas diferentes. Ela tinha uma criança nos braços. Uma criança recém nascida. Veio ao meu encontro e eu pude ver aquele pequeno anjinho, quietinho. Não chorava, tudo o que fazia era mexer os dedinhos.

- Meu primeiro parto. – Ela falou. – Nasceu esta madrugada. –

- Minha primeira paciente faleceu nessa madrugada. – Meu rosto perdeu o pouco do brilho e ela percebeu.

- Fiquei sabendo. Mas querida, não fique assim. – Eu suspirei. – Pense desta maneira: pelo menos os últimos dias dela foram com você. Imagina se a pobre senhora ficasse presa com a Enfermeira Matilde? – Deu uma leve risada. - Os boatos são de que você conseguiu esticar a vida dela por mais alguns meses. Se tivesse sido outra pessoa, ela talvez não tivesse durado tanto. – Abriu um sorriso – A mulher morreu feliz. -

- Obrigada. –

- Preciso levá-la para a mãe, deve estar com fome, não é sua linda? – Falava com o bebê. Mandou um beijo no ar e voltou a andar, não antes de falar: - Mas é aquilo que dizem não é? Pessoas morrendo e pessoinhas nascendo. –

Levantou levemente a criança, que fazia menção a chorar. Fez uma careta e foi de volta para o quarto da mãe, que a esperava muito. Olhei pelo vidro para a maternidade e para vários bebês recém nascidos. Olhei para o outro lado e vi dois dos filhos de Dona Cândida chorando, enquanto pegavam um café. Senti um calor no meu coração, respirei fundo e sequei as lágrimas.

- Fique bem, minha querida. -

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