A Vizinha

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010 3 comentários


Eu nunca havia falado com ela, morávamos no mesmo andar, nos esbarrávamos em corredores e elevadores e lixeiras, mas o máximo de conversa que tivemos foi 'oi'. Tudo o que eu sabia sobre ela era que ela era escritora, meio famosa e que era muito bonita, daquelas que você encontra numa festa e se sente intimidado a ir falar com ela. E que ela quase não sai de casa.
Nosso prédio é daqueles de alta segurança, alta tecnologia para deixar você protegido de qualquer invasor. Neste prédio só moram pessoas: apavoradas demais, importantes demais ou esbanjadoras demais. Meu agente me colocou neste prédio porque diz que 'se qualquer coisa acontecer comigo, ele está ferrado'. Imagino que o dela também pense da mesma maneira.
A uns meses atrás, o síndico chamou todos para uma reunião de emergência, onde ele queria mostrar as novas trancas elétricas que ele havia instalado no prédio. Ele engatou em um discurso sobre como a sociedade está violenta e que não podemos deixar qualquer um entrar em nossas casas, por isso esse novo sistema de alarmes faz alguma coisa que eu não prestei mais atenção, já que outra pessoa começou a falar no meu ouvido.
- O que eu perdi? - Olhei para o lado e lá estava ela, com os braços cruzados, os cabelos presos em um coque mal feito com lápis e uma camisa grande, do tipo que mal podiamos ver o seu short.
- Nada demais. O discurso de sempre. - Dei de ombros, ela bufou.
- Droga, ele quebrou o meu pique. Agora para retomar o rumo da história vai ser difícil... -
- Hã? - Me olhou assustada, pareceu perceber que eu ainda estava prestando atenção a ela.
- Ah, é que meu editor quer que eu entregue os próximos dez capítulos tipo.. para ontem. Então eu tenho que correr e escrever o máximo que eu conseguir. - E deu uma risadinha, como se fosse uma piada interna ou coisa assim. Ri com ela e voltamos a dar atenção ao que o síndico falava.
- Esta, meus caros condôminos, é a super segurança do futuro! Logo, vocês terão um controle maior de quem entra e quem sai do prédio, as câmeras irão monitorar tudo, as portas terão trancas travas elétricas e... -
- Quanta besteira... - Ela rolou os olhos e ri sozinho. Ela falava comigo como se fossemos amigos íntimos, como se nós sempre conversássemos e, no fundo, eu senti que isso iria virar uma rotina.
Mas ficou por isso mesmo.
Alguns meses depois, às 17:24 da tarde, estava tirando um cochilo quando fui acordado com um barulho absurdamente alto de sirene. Assustado, saí de casa e fui para o corredor, onde ela também estava.
- O que é isso? - Ela me perguntou, e eu dei de ombros. Os outros moradores também estavam saindo de casa e ouvia-se o murmurinho insessante e de repente o alarme parou, e barulhos de trancas se fechando simultaneamente se fez presente em todo o prédio. Tentei rodar a maçaneta para entrar em casa, mas nada feito: estava trancada. Todas as portas de todos os apartamentos estavam trancadas, todas as pessoas tentavam bater na porta, arrombar e tudo o mais, mas nada feito.
- É... Super segurança do futuro. - Falei rindo e a vi chutando a porta.
- Futuro uma ova, eu quero entrar na minha casa! - E continuava a chutar a porta e vi seu nariz ficar vermelho e seus olhos encherem de lágrimas, mas ela continuava a chutar a porta como se isso fizesse ela descarregar todas as suas preocupações. Segurei elas pelos ombros delicadamente (para não sobrar para mim) e a sentei na escada.
- Calma, assim você quebra o seu pé. - Ela respirou fundo e fez algo que eu interpretei como 'engoliu as lágrimas'.
- Meu pé é o de menos, se eu não entregar o último capítulo para o editor hoje meu pé vai ser a última coisa que vão se importar. - E então, as luzes de emergência se acenderam e o elevador parou de funcionar. - Ótimo, agora acabou a luz. Vou ter que refazer tudo. - Ela afundou a cabeça nas mãos e eu me sentei ao lado dela.
- Olha, daqui a pouco o síndico deve resolver isso. - Falei por falar, não tinha certeza de nada mesmo, para mim, dormir no corredor ia ser o de menos, não me importava que fim ia ter minha noite. De repente ouvimos um discurso vindo de um dos andares de baixo.
- Senhores condôminos, sinto muito pelo transtorno. Lamento informar que estamos presos no prédio. Houve um problema com o sistema de travas e, antes que nós pudessemos consertar, a luz acabou e nós só poderemos abrir as travas quando a luz voltar. - E dito isso, um murmurio maior se instalou no prédio, coisas como: 'Eu tenho panela no fogo!' ou 'Meu bebê esta dormindo sozinho!' ou até 'Mas toda a cidade está às escuras, não tem previsão de voltar' foram ouvidas, e o último comentario fez minha vizinha suspirar.
- Ótimo. Isso é ótimo. - Sua voz se esganiçou um pouco no 'iSSo'. - Só me faltava essa para completar meu dia perfeito! - E encostou a cabeça na parede.
- Er... Quer falar sobre isso? - Perguntei, ela me olhou desconfiada. - Ah, qual é! Não sou nenhum paparazzi e, pelo jeito, vamos ficar muito tempo aqui, pelo menos a gente conversa. - Disse, dando de ombros e me encostando nas barras de ferro que seguravam o corrimão. Ela abriu um meio sorriso.
- Ah, nada demais. Eu simplesmente perdi meu noivo, minha família e agora - Ela apontou para a porta - perdi minha carreira. - E então olhou para o relógio. - E isso tudo antes das 18:00. - Completou, com um sorriso irônico no rosto.
- Outch. - Foi tudo o que falei, e ela riu.
- Sua vida deve ser tão mais agradável, porque não fala você? -
- Ah, você não ia querer minha vida não, é muito chata. Fazer shows ao redor de todo o mundo, festas todo fim de semana, fãs que dariam a vida por mim... É... É bem chata... - Ela me bateu no braço e riu. - Tá bom, agora que você já sabe da minha triste história, deixe-me ouvir a sua. - Dando-se por derrotada, ela começou a falar.
- Bom, por onde eu começo? - E coçou o queixo.
- Fala do seu noivo. - Sugeri, ela suspirou e olhou para o último degrau da escada, como se tentasse se concentrar.
- Ok... Eu o conheci na faculdade, ele era amigo de uma amiga e tudo acabou rolando bem e nós namoramos. Depois de três anos de namoro, ele me pediu em casamento e, logo depois que ficamos noivos, eu escrevi meu primeiro livro. Depois desse livro, meu editor não me deixou mais em paz, sempre me cobrando novos livros com temas que eu jamais pensei em escrever, o que torna tudo muito mais dificil e cada vez com prazos bem menores e me levava para cima e para baixo com entrevistas e noites de autógrafos e livrarias e etc... Até que, esta manhã, enquanto eu estou me matando para tentar escrever um livro sobre vampiros, porque, segundo meu editor, vampiros estão na moda e estão vendendo, então eu devo me focar neles. - Pigarreou. - Esta manhã ele me ligou dizendo que não conseguia mais viver com a ilusão de que eu o amava e que não ia continuar comigo e disse que, na minha primeira viagem depois dele me pedir em noivado, o filho da mãe dormiu com a secretária e diz que ela está "mais apaixonada do que eu". - Fez aspas com o dedo. A essa altura, eu a olhava pasmo, nunca pensei que essa mulher de aparência tão de menina, tão perfeita, sustentasse tanta coisa ruim e continuasse a viver como se nada estivesse acontecendo. - Como se já não fosse o bastante, minha mãe me liga e diz que está se divorciando do meu pai e fala mal dele para mim por quase uma hora, logo depois meu pai me liga e faz o mesmo. E, para completar, o chefe do meu editor me liga e pergunta: 'por quê você não escreve um livro bom? Estou esperando um best-seller, estamos fazendo cortes na empresa e a menos que você consiga escrever um livro que seja muito bom, está fora.' - Ela tomou fôlego. - Viu como sua vida é tão menos chata que a minha? - E sorriu nervosa. E, em menos de um segundo, eu vi aquela pequena mulher desmoronar. Vi seus olhos se enchendo de lágrimas e eu a abracei. Ela não só aceitou o abraço muito bem, como se acomodou em meu peito e chorou muito, como se a tempos não se sentisse acolhida, como se tudo o que ela precisava era de um abraço.
- Mas porquê os seus editores não deixam você escrever o que você quer? - Tentei medir as palavras. - Sabe, por exemplo: a minha música. Se eu não me sinto bem com a letra eu não canto, simplesmente não flui. - Ela ajeitou a cabeça para que pudesse falar.
- Acontece que ninguém mais quer ler sobre amor. Só coisas do tipo ETs e vampiros e qualquer outra coisa que tenha porte de arma. - Decidi deixar quieto, afinal, não vou ficar remoendo. Puxei um assunto qualquer e ficamos conversando sobre qualquer coisa que viesse em minha cabeça, estava disposto a fazê-la esquecer do computador e seus livros e de todo o resto.
Ainda estávamos abraçados quando um som foi ouvido em todo o prédio: o som da luz voltando. Todos comemoraram, ninguém aguentava mais ficar sentado em escadas e, em questão de meia hora depois, o síndico conseguiu abortar o sistema de trancas e conseguimos entrar em nossas casas. Portas se abrindo desesperadamente, vozes dizendo 'graças a Deus' e coisas do tipo ecoaram pelas escadas, todos entraram apressados para fazer alguma coisa que estavam fazendo e foram interrompidos e eu abri a porta do meu apartamento e me dei conta: eu não tinha nada para fazer. Enquanto aqui ao lado ela vivia um turbilhão de coisas ao mesmo tempo, eu nunca tinha nada sequer para pensar! Saí no corredor de novo e a porta ao lado estava aberta, resolvi entrar. Fui atrás dela, que já estava mexendo no computador quando eu olhei para a janela: estava muito escuro, provavelmente já passava das onze horas.
- Qual era o prazo para você entregar? - Perguntei, ela mexia com o mouse tentando reabrir o arquivo.
- Foi às 19:00. - Disse, sem me olhar. De repente bateu com a mão na mesa. - Droga, não conseguiu resgatar nada. Vou ter que começar tudo de novo. - E bateu a testa na mesa. Pigarreei. Estava com ambas as mãos atrás na nuca, ela virou a cabeça para mim e, dando de ombros, eu disse:
- Quer ajuda? -

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